Não estamos diante de um conflito similar a outros do século XX como insistem alguns comentaristas e especialistas político
Quando o sociólogo alemão Ulrich Beck trouxe em sua obra a “Sociedade global de risco: na busca da segurança perdida” (em tradução livre) o risco global como sintoma das promessas não cumpridas de segurança ambiental, industrial, institucional e política da modernidade, talvez não esperássemos que tais temas fossem tão imperativos nestas duas décadas que iniciam o século XXI. O autor apresentou algumas características que seriam definidoras do nosso tempo: a incerteza enquanto estado permanente das relações e os conflitos dela decorrentes. Há um “quê” de profecia nas discussões de Beck, ou talvez, e creio mais nesta segunda hipótese, um rigor científico apurado na interpretação da realidade, sobretudo ao problematizar sobre a linha tênue dos conflitos culturais entre Leste e Oeste, dos riscos que se transformam em negócios lucrativos e, sobretudo, das sensações de guerra e paz que movem a sociedade. O autor traz a ideia de “guerra preventiva” e a exemplifica com a invasão norte-americana ao Iraque em 2003, a qual se junta a outros episódios de uso da força de forma “legítima” perante a opinião pública (Síria, Líbia etc). A guerra preventiva encaixa-se nos movimentos de encenação que legitimam os ataques, os bombardeios e as invasões sob a égide da busca pela paz, ou melhor, por um estado de paz futuro tão abstrato quanto a sua existência no presente.
Ao assistirmos a cobertura televisiva da imprensa tradicional (canais abertos ou de TVs por assinatura) sobre o conflito entre Rússia e Ucrânia, talvez cause estranheza para alguns a percepção linear de mundo apresentada pelos analistas convidados ou mesmo dos próprios jornalistas de política. Há mocinhos, vilões e uma dualidade plenamente justificável em tela, que é complementada pelas histórias individuais que buscam dar um rosto ao conflito (o brasileiro que fugiu da guerra ou a família que espera o seu retorno). Esta visão, de certa forma limitada, é incompatível com as múltiplas variáveis envolvidas na guerra, sendo estas de natureza histórica de constituição destas nações, dos interesses geopolíticos que passam por questões territoriais que envolvem Ucrânia e Rússia (e que mandam recados a outras nações como China e Taiwan) ou mesmo variáveis econômicas que sempre se fazem presentes em conflitos desta natureza. Termos como esquerda, direita, ditadura, autocracia e a própria guerra (ou seria uma invasão?) transitam nas diferentes falas dos analistas como se buscassem desesperadamente por um abrigo linguístico legítimo.
Adicione-se a esta cobertura a espetacularização do risco. Obviamente existe um grande risco em se cobrir uma guerra, da mesma forma em que há uma contribuição inestimável da imprensa livre em poder relatar o que está acontecendo no campo de batalha, até mesmo para frear arroubos de violência contra civis e garantir os limites éticos que, mesmo em uma guerra, devem existir. Frisa-se aqui, portanto, que é fundamental a existência da imprensa livre e a sua efetiva cobertura da guerra. Contudo, é perceptível também o ponto em que esta cobertura torna-se um exercício de espetacularização de si mesma. É ilustrativo neste contexto a imagem de uma jornalista em Kiev que permaneceu ao vivo após uma bomba cair próximo de onde ele se encontrava. A imagem não é cortada para que o jornalista se abrigue e busque cuidar da própria segurança, mas este permanece em tela ouvindo frases do âncora do telejornal: “Você está bem? (…) Ele está tentando colocar um colete à prova de balas agora para ter certeza de que está seguro.”, prossegue o apresentador. Neste momento, o real (a cobertura) cede lugar ao hiper-real (o esforço espetacularizado da cobertura). Geertz em “A interpretação das culturas” se referia a uma luta pelo real ao falar da política do significado, o que pode se relacionar com o que Jean Baudrillard também discutiu ao trazer a noção de hiper-real. Segundo Baudrillard, a hiper-realidade configuraria um estado em que não se tem como foco os objetos em si, mas o sistema de signos que os espelha, em que o real se perde pela saturação de signos.
Se estamos em vias de uma terceira guerra mundial ou do uso de armas nucleares, esta são perguntas das quais ainda não temos respostas definitivas. Mas é importante pontuar que já temos indícios de uma guerra em que a asfixia econômica norteia uma espécie de “cancelamento” no âmbito das nações, tal como se observa em outras esferas da vida pública, no cancelamento de empresas ou de personalidades públicas. Este que é um traço da nossa cultura pós-moderna, pós-humana ou pós-digital, agora se aplica aos países, sendo seguramente um fator novo a ser considerado. Sanções econômicas sempre existiram, porém uma ação articulada que englobe governos, empresas, sociedades esportivas e culturais talvez se apresente como algo até então não vivenciado.
Em relação à Internet, a cobertura da imprensa por meio de redes sociais tem trazido uma instantaneidade nunca antes vista, o horror em tempo real sendo monetizado e as diferentes percepções, não apenas da cobertura oficial, mas também de quem realmente está vivenciando a guerra como cidadão comum na linha de frente. No que se refere à audiência, observa-se também o perfil de um tipo de espectador alheio às implicações e consequências do conflito, que comenta sobre a guerra em redes sociais como se estivesse em um jogo de Counter-Strike ou assistindo a um filme de Hollywood, evidenciando a ideia de que ficção e realidade parecem integrar para estas pessoas um mesmo espaço de compreensão do mundo. Os comentários postados em redes sociais oscilam muitas vezes entre a esperança divina de uma pronta solução para o conflito bélico e o prazer mórbido em descrever o poder de destruição dos mísseis e tanques. E, por fim, como mais um sintoma peculiar desta Guerra, está o fato de que a resposta do presidente da Ucrânia aos primeiros bombardeios russos não se deu por via militar ou mesmo diplomática, mas por meio de uma charge postada no Twitter, associando Putin a Hitler.
Definitivamente, não estamos diante de um conflito similar a outros do século XX como insistem alguns comentaristas e especialistas políticos. A realidade nos apresenta um mundo multipolar, extremamente interdependente em termos econômicos e cujos interesses perfazem um conjunto de subtextos da guerra. Talvez a ideia de uma terceira guerra não devesse ser entendida sob a perspectiva da atuação conjunta e física de países militarmente, mas pelas suas diferentes camadas que perfazem um grande mosaico em escala global: a guerra da informação, a guerra das relações públicas e diplomacia, a guerra cibernética e a guerra econômica. São muitas frentes de batalha ocorrendo de forma concomitante e intensa, o que exige uma cobertura que nos remova das habituais trincheiras do século XX.
As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do PCdoB-RJ
Fonte: Vermelho