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O presidente estadual do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Daniel Iliescu, concedeu uma entrevista ao site Sputnik News Brasil sobre o centenário de Vladimir Lênin, seu legado, e a atuação dos comunistas no país.

Trechos das respostas de Daniel Iliescu foram citados em momentos diferentes da matéria produzida pelo jornalista Rennan Rebello. Confira agora a entrevista do presidente do PCdoB-RJ na íntegra:

 

1) Como o anticomunismo é usado para influenciar a opinião pública?

O comunismo é o movimento pelo bem comum, um movimento internacional impulsionado a partir do manifesto comunista redigido por Marx e Engels, e, posteriormente, desenvolvido a partir das ideias e ações de Lênin e de outras lideranças comunistas, bem como, de movimentos revolucionários que se espalharam ao redor do mundo. Esse movimento comunista busca mobilizar e conscientizar as classes trabalhadoras de todos os países para entender, interpretar, e transformar a realidade de exploração e desigualdade que as pessoas vivem. O anticomunismo é o movimento contrário a esse bem comum, contrário à conscientização e mobilização das pessoas pelo fim das desigualdades. E o anticomunismo, enquanto fenômeno social, tem como método a mentira, o ódio, o preconceito, porque seu objetivo é afastar a maioria das populações dessa perspectiva de que é necessário e possível transformar essa realidade de exploração. Um exemplo desse método é o mito de que os comunistas vão tirar você da sua casa, enquanto, na realidade que a gente vive hoje, quem tira as pessoas de suas casas são os bancos, as grandes concessionárias de rodovias, a especulação imobiliária. Ou seja, há uma contradição flagrante de um medo do comunismo e uma realidade objetiva que já acontece no Brasil inteiro. Outro mito é a ideia de que os comunistas são contrários a Deus e às religiões. O direito à liberdade religiosa é garantido na Constituição Federal graças à emenda do deputado comunista baiano, Jorge Amado, apresentada em 1946. Esses são exemplos dos métodos mentirosos do anticomunismo que nos ajudam a pensar de forma mais concreta sobre essa questão.

 

2) O Brasil nunca foi um país de designação comunista, mas por que esse regime ainda é lembrado?

Há um poema lindo do Ferreira Gullar que diz que o “Partido Comunista do Brasil não se tornou o maior partido do ocidente nem do Brasil, mas quem contar a história do nosso povo e de seus heróis terá que falar dele ou estará mentindo”. Gullar faz referência nesse poema a toda história centenária do Partido Comunista do Brasil, que foi fundado em 1922, há 102 anos, e sempre esteve presente em lutas sociais muito importantes: por exemplo, a luta democrática, pois ao longo de todos esses anos os comunistas no Brasil sempre tiveram a pauta da democracia como uma questão muito importante, inclusive, centenas de militantes deram a vida pela democracia na ditadura de Vargas e na ditadura empresarial-militar instalada em 1964. O Partido Comunista tem um lastro muito grande no campo das ideias mais avançadas, participou ativamente de toda defesa da soberania nacional, do tema do petróleo, da educação, do SUS, da engenharia nacional, dos direitos sociais. Nas últimas décadas, todas as lutas por direitos afirmativos da maioria da população como a questão da negritude, da luta das mulheres, dos direitos da população LGBTQIA+, das pessoas com deficiência, tiveram o protagonismo do Partido Comunista. O comunismo é uma corrente de pensamento que está associada às lutas sociais, que defende um projeto de país e os direitos de uma parcela muito grande da população. Também existe o fato de que, enquanto houver desigualdade e injustiça, haverá quem lute para que elas sejam superadas, e isso tem a ver com a perspectiva comunista de transformação e de melhoria da vida das pessoas. Por isso, eu entendo que no Brasil existe uma expressão comunista forte, apesar de ser bombardeada há muito tempo pelo anticomunismo.

 

3) Apesar dos casos em que alguns políticos de esquerda tentaram se afastar do comunismo por medo de rejeição, como a esquerda brasileira em geral assume ou adapta o legado de Lênin entre sua militância e em seu pragmatismo político?

A esquerda como um todo, conscientemente ou não, absorve o legado de Lênin. A própria perspectiva de ação na sociedade com foco nos trabalhadores e trabalhadoras, que muitos partidos da esquerda reivindicam, é um legado leninista. No Brasil, o único partido com representação parlamentar e institucional nacional que assumiu o legado do Lênin enquanto uma proposta explícita foi o PCdoB. Dizer que somos marxistas-leninistas significa que temos uma chave de análise da realidade que é o materialismo histórico e dialético, uma forma de interpretar a realidade e agir sobre ela de uma maneira organizada e política. Entendo que o legado de Lênin é reivindicado pela esquerda de forma mais geral, mas de forma consciente, através da busca pela implementação da teoria na prática, é o PCdoB quem reivindica esse legado, além de outras organizações e movimentos que não têm atuação institucional hoje, mas que também fazem parte do debate em torno dessa perspectiva socialista no país. Entendo também que existe uma linha de equilíbrio, pois não é a pregação ideológica que vai promover a conscientização das pessoas, esse trabalho é bem mais complexo. Para além de buscar otimizar e qualificar esse diálogo com a classe trabalhadora, também é importante afirmar a perspectiva do comunismo com a melhor estratégia de comunicação possível, que precisa ser cada vez mais refinada para conscientizar de forma clara e hábil a população sobre o que é o projeto de transformação proposto pelos comunistas.

 

4) Como o partido se posiciona atualmente como comunista? Sofre alguma retaliação anticomunista? Caso sim, quais?

O PCdoB se reafirma como comunista, isso está no nosso nome, na nossa bandeira e nos nossos símbolos, como a foice e o martelo cruzados que representam a união entre os trabalhadores do campo e da cidade. Defendemos o socialismo como uma estratégia e uma etapa de transformação da sociedade, mas que pretende alcançar o comunismo, uma sociedade sem classes, sem um Estado opressor, sem nenhuma exploração do trabalho de muitos por poucos. Evidentemente, por se reafirmar comunista, o PCdoB sofre com esse anticomunismo crescente no Brasil, na América Latina, e no mundo. Um Partido político que tem coragem de se apresentar como comunista é muito afetado por esse anticomunismo, mas a história vem nos ensinando como nos protegermos, como proteger a nossa militância e a nossa base social. O anticomunismo, especialmente nesse contexto de violência política em que vivemos, é um fenômeno que precisa ser combatido em favor da democracia, da perspectiva não violenta, da política como um exercício do cidadão. O anticomunismo é uma ferramenta contra a participação popular e precisa ser enfrentado.

 

5) Qual é a importância do legado de Lênin?

O legado de Lênin é gigante pois ele ajudou a mudar a humanidade, é um legado enorme tanto por sua produção teórica, quanto por sua ação política. Vladimir Lênin e a Revolução Russa introduziram no mundo o debate da agenda social, todas as conquistas do século XX, tanto nos países socialistas como nos capitalistas que introduziram o Estado do Bem-Estar Social e as políticas redistribuitivas de renda, são efeito da revolução do Lênin. Todas as interpretações teóricas que o líder revolucionário russo teve do imperialismo, da financeirização da economia, e de tantas outras questões, são legados até os dias de hoje. A prática de Lênin também trouxe contribuições fundamentais para a humanidade: por exemplo, o sistema de relações internacionais consagrado na ONU hoje, com o princípio da autodeterminação dos povos e do respeito à soberania nacional, é também um legado de Vladimir Lênin.

 

6) Recentemente, vimos o presidente Lula falar para a militância que estava feliz pelo STF ter o primeiro ministro comunista ao se referir ao Flávio Dino, mas em paralelo vemos Bolsonaro ainda levantando a bandeira do anticomunismo para o seu público de direita. O comunismo e seus ícones ainda são relevantes no debate da política brasileira?

 

Flávio Dino é um ótimo exemplo pois foi eleito governador do Maranhão pelo PCdoB duas vezes, passou grande parte de sua trajetória política no nosso partido e, apesar de não estar mais filiado, mantém muitos dos seus vínculos e de sua visão de mundo. Mas, justamente pela sua coerência com essa visão, ele manterá no STF uma atuação republicana de defesa do Estado Democrático de Direito e de um projeto de país que supere as desigualdades. Flávio Dino, ao reivindicar o comunismo, sempre fala de Jesus, que segundo ele sempre foi o primeiro comunista. E, de fato, Dino governou o Maranhão dividindo o pão, como Jesus fez. Mas é importante ressaltar que os ícones clássicos do comunismo são produtos da história, correspondem a momentos específicos dela. Portanto, há uma consciência da nova geração de comunistas no Brasil de que é preciso saber ressignificar os ícones e os símbolos, além de saber traduzir dentro da realidade contemporânea o projeto e a perspectiva dos comunistas, essa é uma necessidade para conquistar corações e mentes. É preciso mostrar para a maioria da população que não há um significado estreito, mas muito amplo. Devemos difundir a ideia de uma nova sociedade com justiça social e com posições que a maioria da população concordará na medida em que a nossa expressão puder ser a mais clara, contemporânea, e atual possível.

 

7) Como o pensamento e a representação de Lênin foram inseridos no Brasil? A sua figura ainda evoca ódio e admiração na população e seus atores políticos a ponto de influenciar a opinião pública?

O pensamento de Lênin que chega ao Brasil na primeira metade do século XX é permeado pela interpretação dos intelectuais do Partido Comunista, de pessoas engajadas politicamente, e da imprensa. A partir da segunda metade do século XX, que as universidades passam a debater mais profundamente as ideias de Lênin, assim, vários autores começam a desenvolver e interpretar o pensamento do líder comunista russo. É preciso ressaltar que essa inserção das ideias leninistas se dá pela via acadêmica e através de certos círculos políticos, na minha interpretação a população brasileira não conhece o Lênin, portanto, não é uma figura que gera ódio ou admiração no povo, mas nesses círculos acadêmicos e políticos sim.

 

8) Por que ainda há uma percepção equivocada do comunismo em parte da população?

Isso é algo bastante previsível, visto que numa sociedade capitalista as ideias dominantes são as ideias da classe dominante. Não interessa a esta classe que a população enxergue o comunismo como um bom caminho para combater as desigualdades e promover avanços e melhorias na vida das pessoas. Anticomunismo não é o que o bilionário capitalista fala para as pessoas ao acordar de manhã, existe todo um circuito. Gramsci e Althusser falam sobre isso quando abordam a questão da hegemonia e dos aparelhos que constroem essa perspectiva hegemônica, bem como, Bourdieu ao formular o conceito de Poder Simbólico. Sem fazer um debate generalista, é importante reconhecer que, através de uma série de estruturas que envolvem grandes meios de comunicação, setores das Forças Armadas, parte das denominações religiosas fundamentalistas, é promovida a reprodução dessa ideologia dominante, que está amparada em última instância no anticomunismo, pois busca afastar as pessoas da perspectiva de que é possível, justo, e necessário transformar a sociedade. Enfrentar essa realidade é um desafio atual não só para o Partido Comunista, mas para todas as pessoas que lutam por uma sociedade mais justa. Para isso, é preciso reafirmar a perspectiva do comunismo, a ideia de uma sociedade sem exploração, sem miséria, sem violência, e sem injustiça. Assim sendo, é necessário reafirmar a luta pelo socialismo no Brasil, que é a estratégia de construção de um projeto de nação mais justo, desenvolvido e inclusivo.