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Há décadas que a população do Rio de Janeiro sofre com os efeitos de uma política de segurança pública equivocada, baseada na repressão violenta focalizada nas regiões periféricas, atingindo diretamente as pessoas mais pobres, sobretudo, da região metropolitana.

Esse uso da violência como política de Estado vem causando episódios terríveis como o ocorrido no dia 24 de maio na Vila Cruzeiro, palco de uma chacina policial que provocou a morte de 26 pessoas. Essa foi a segunda operação mais letal da História.

A ação foi realizada pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Rio de Janeiro em conjunto com Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF).

Moradores da comunidade relataram cenas de tortura e de violência extrema. O jornal Folha de São Paulo entrevistou algumas vítimas e, de acordo com uma mulher que mora na Vila Cruzeiro, a sua casa foi metralhada às 3h30 da manhã:

“A gente se jogou da cama para o chão e começou a gritar, dizendo que na casa tinha morador, que a gente era trabalhador. Mas eles (…) continuaram atirando”, afirmou a moradora.

É importante salientar que a reportagem do Portal Vermelho tentou ouvir outras moradoras da Vila Cruzeiro sobre a chacina, entretanto, ninguém quis conceder entrevista com medo de represálias.

Apesar das 26 mortes e das denúncias de tortura e de execução, o Governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, chamou o episódio de “efeito colateral” e negou que houve uma chacina na Vila Cruzeiro:

“Não houve chacina alguma. O que houve foi uma operação que a polícia entrou às quatro da manhã e tinha um bonde fortemente armado saindo. Eles tentaram fazer chacina com a polícia. Não há chacina alguma. (…) Infelizmente, tem hora que o efeito colateral da operação é esse”, pontuou o Governador.

Cláudio Castro é um dos principais aliados de Jair Bolsonaro e tem mostrado sua fidelidade também através da política de segurança pública adotada no Governo. Operações como a realizada na Vila Cruzeiro vão de encontro à decisão do STF sobre as incursões policiais nas comunidades fluminenses; o que é encarado por alguns analistas como mais uma “provocação” do bolsonarismo à Suprema Corte brasileira. Nas palavras do jornalista Marcelo Auler, “foi uma chacina planejada. Não foi algo ao acaso, e o planejamento foi minucioso para ludibriar o Supremo Tribunal Federal”.

Segundo o advogado criminalista e coordenador do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), Djefferson Amadeus, a própria narrativa oficial em torno do caso tenta “descredibilizar” o STF:

“Não há dúvida que existe uma narrativa quando se observa, por exemplo, que a polícia disse o seguinte: que um dos objetivos dessa operação é justamente combater a migração de pessoas que eles estão dizendo que vieram de outros Estados por conta da decisão do STF. (…) É uma falácia, e a gente precisa de fato desses espaços para acabar com essa narrativa falaciosa que, de certa forma, acaba atraindo um senso comum autoritário que vige aqui nesse país. (…) Inclusive nós, de forma coletiva, juntamos na ADPF das Favelas, na qual a gente questiona justamente a ausência de responsabilidade em relação às pessoas que destruíram o memorial do Jacarezinho”, afirmou Djefferson Amadeus em entrevista ao Jornal GGN.

 

Cláudio Castro e o aprofundamento da política da morte

O governo de Cláudio Castro (PL) vem agudizando o problema da violência policial no estado. O Governador aprofundou, em sua gestão, o uso da violência como política de Estado e o resultado vem sendo tenebroso. De acordo com a pesquisa do Instituto Fogo Cruzado apresentada pelo site da CNN Brasil, apenas durante os anos de 2020 e 2021, aconteceram 79 chacinas na região metropolitana do Rio de Janeiro em ações policiais, resultando em 329 mortes.

Segundo o Relatório Anual do Instituto Fogo Cruzado, a violência nas operações policiais no Rio de Janeiro cresceu de forma significativa em 2021. De acordo com a pesquisa, em um ano o número de tiroteios nas ações da polícia foi ampliado em 15%.

Jacqueline Muniz, cientista política, antropóloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), falou sobre a amplitude do problema na atual conjuntura política do Rio de Janeiro:

“No caso do Rio de Janeiro fica muito evidente que se tem vários governos autônomos. Tem o governo do Castro, tem o governo policial, o governo miliciano e os governos do tráfico. O senhor governador não governa as polícias, ele aceitou e deliberou para o mundo do pode tudo. ’A minha polícia faz qualquer coisa e eu sigo por aqui’. (…) Isso sabota a própria possibilidade de prestação de serviços policiais de qualidade. Se trata de produzir um projeto que é a maximização da insegurança. Tem que lembrar que isso tem rendimento eleitoral”, disse a professora em entrevista a Marilu Cabañas, do Jornal Brasil Atual.

Cláudia Alexandre, que já perdeu dois filhos assassinados em ações policiais, ressaltou que a violência praticada pelo Estado aumentou muito na gestão de Cláudio Castro e pediu um basta nessa política de segurança pública:

“A situação piorou muito, esse Governo Cláudio Castro é exterminador e o extermínio é de pretos, pobres e periféricos, que morrem sem direito à defesa no Rio de Janeiro. (…) Esse Governo atual tem ampliado o medo da população da periferia, pois Cláudio Castro não governa para o povo, governa para a elite; esse é um Governo do mal. Diante disso, as pessoas vivem amedrontadas e se escondem quando a polícia aparece, pois eles já chegam atirando e atingem quem não tem nada ver. O que eu ouço muito é: o que vai acontecer? Como vamos ficar? Onde vamos parar? O Governo Cláudio Castro é um desgoverno pois deu total liberdade à polícia para matar. É preciso um basta! Deixem os nossos jovens viver!”.

Medidas que poderiam reduzir práticas violentas da Polícia Militar no Rio de Janeiro são negligenciadas propositalmente pelo Governo Cláudio Castro. Isso fica evidente, por exemplo, no caso da implementação das câmeras nas fardas dos policiais fluminenses, que vinha sendo constantemente protelada pelo Executivo Estadual.

A Lei que instituiu o uso de câmeras pelos agentes da Polícia Militar do Rio foi sancionada em junho de 2021, entretanto, apenas no dia 28 de maio de 2022 a PM começou a utilizar o recurso. Além do atraso, também é importante destacar o número reduzido de batalhões que já estão usando as câmeras: apenas oito (Botafogo, Méier, São Cristóvão, Tijuca, Olaria, Ilha do Governador, Copacabana e Leblon).

 

A violência policial é contra negros e pobres

As principais vítimas da violência praticada nas incursões policiais são os negros moradores das comunidades da região metropolitana do estado do Rio de Janeiro.

Uma pesquisa realizada pela Rede de Observatórios da Segurança apontou que o Rio de Janeiro é o estado com o maior número de mortes resultantes de ações policiais. Em 2020, 1.245 pessoas foram mortas pela polícia no estado, desse total, 86% são negros.

Apenas na capital fluminense foram registrados 415 óbitos. 90% das pessoas mortas nas ações realizadas na cidade do Rio de Janeiro em 2020 eram negras.

Essa realidade se repete em outros estados brasileiros, mas a situação do Rio é a mais grave. De acordo com o coordenador de pesquisa da Rede de Observatórios de Segurança, Pablo Nunes:

“Esses números do Rio de Janeiro se explicam muito por conta do comportamento da polícia. A gente tem um cenário que não tem paralelo com nenhum outro estado do país. A polícia do Rio mata muito. (…) Em todos os estados analisados, eles (negros) estão mais representados entre o total de pessoas mortas do que na população geral. Isso evidencia uma estrutura brasileira de reprodução do racismo e de certa aceitação dessas mortes por meio da sociedade”, afirmou em entrevista ao Portal G1

 

 

A violência policial como mecanismo de “controle social”

Coronel Ibis, ex-comandante da Polícia Militar, historiador, e especialista em segurança pública, ressalta que “o poder punitivista” serve também como mecanismo de “controle social”:

“Na periferia do capitalismo, como o nosso país, o estado policial cai como uma luva. Não é por acaso que levou 30 anos para fazer uma lei – e uma lei muito ruim. Por isso, a gente até hoje não conseguiu dar conta desse modelo. O que me faz pensar que, de alguma maneira, cumpre uma finalidade dentro da forma social que opera na lógica da exclusão. O neoliberalismo opera na lógica da exclusão. E o que se faz com quem está excluído? Essa política de segurança pública centrada na guerra funciona nesse tipo de modelo. Temos um estado policial, não um estado democrático. No Brasil, o poder punitivista sempre teve uma aplicação formal e informal. É um fenômeno muito próprio do colonialismo, uma maneira de exercer controle social”, disse em entrevista ao The Intercept Brasil.

Coronel Ibis ainda salienta que há o “uso sistemático da administração da exclusão através da violência”. De acordo com o ex-comandante da PM-RJ:

“O poder tolera a violência policial, porque ela cumpre essa finalidade de um poder punitivo informal, que a gente herda da sociedade colonial. Só que isso é ineficiente para lidar com o medo. E ele vem desse uso sistemático da administração da exclusão através da violência. Não existem políticas públicas de médio e longo prazo. Aí a coisa gira em torno do voluntarismo, do “eu vou resolver isso prendendo”, ou “dando tiro na cabecinha”, como disse um governante. Fica tudo na base do voluntarismo, na solução mágica, no personalismo. Não vejo chance de termos direitos humanos nesse sistema neoliberal”.

 

Quem ganha com essa política de segurança pública?

Operações como a da Vila Cruzeiro provocam questionamentos sobre a real eficiência desse tipo de ação no combate ao crime organizado. Incursões violentas nas favelas não atingem o centro de gravidade do problema pois não alcançam os verdadeiros chefes e grandes responsáveis pelo narcotráfico e por outras práticas criminosas. A professora Jacqueline Muniz é uma das estudiosas que vem chamando a atenção para essa questão:

“Essa lambança que a gente assiste tem relação com essa autonomização (predatória das polícias), em que todo mundo bate palma. Só que cancelar CPF, respondendo ao presidente Jair Bolsonaro, não cancela a economia política do crime. (…) O dinheiro do crime vai para dentro das carreiras políticas que são as melhores lavanderias. Quando se tem matança, é porque se tem uma rede de corrupção por trás. E hoje está todo mundo comemorando ali nas coberturas do Rio de Janeiro, nos palácios. Quer brincar sério de enfrentar o crime organizado, começa a visitar os palácios de governo, as câmaras legislativas, porque o mercado ilegal segue de vento em poupa”, afirmou a pesquisadora.

A cientista política e docente da Universidade Federal Fluminense (UFF) ressalta ainda que:

“As chefias do crime, que não estão nas favelas, estão comemorando o resultado dessa operação, porque quem ganhou foram os policiais corruptos. Subiu o preço da propina, o preço do alvará da drogaria ilegal que funciona das bocas de fumo. (….) Temos que cobrar das nossas lideranças políticas que tenham coragem de colocar o problema no lugar certo, esse é um problema político, de governabilidade e de controle”.