Um sonho antigo dos liberais brasileiros está prestes a se tornar realidade após a aprovação no Tribunal de Contas da União (TCU) do processo de privatização da Eletrobras, estatal instalada oficialmente no dia 11 de junho de 1962.
A desestatização da empresa vem sendo discutida de forma consistente em diversos governos que adotaram uma política econômica de inclinação neoliberal. As gestões de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Michel Temer (PMDB) e Jair Bolsonaro (PL) colocaram em pauta a privatização do setor elétrico e – ao que tudo indica – a Eletrobras de fato passará pelo processo de capitalização nos próximos meses.
Apesar dos argumentos dos defensores da privatização, a estatal – em balanço divulgado na última terça-feira (17) – revelou que o lucro líquido de suas operações continuadas subiu 69% no primeiro trimestre de 2022 em comparação com o mesmo período do ano anterior, chegando a R$ 2,716 bilhões. A receita operacional líquida avançou 12% nos três primeiros meses deste ano e atingiu o montante de R$ 9,181 bilhões; números que mostram uma empresa sólida e superavitária.
Uma nota técnica publicada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) evidencia que:
“Além de possuir indicadores econômico-financeiros robustos, a Eletrobras vem apresentando lucros expressivos nos últimos anos, demonstrando assim ser uma empresa sólida e, também, rentável. (…) De 2018 a 2020, o lucro líquido total acumulado pelo grupo foi de R$ 31 bilhões. Soma-se à relevância da empresa para a sociedade brasileira em diversas dimensões, sua contribuição para as contas públicas nacionais por meio de repasses de dividendos ao Tesouro Nacional. No período de 2000 a 2020, a Eletrobras repassou para o caixa da União o montante de 19,3 bilhões de reais em dividendos, em valores atualizados pelo IPCA – Índice Nacional de Preços ao Consumidor Ampliado. Se privatizada, esses aportes deixarão de ocorrer”.
A expectativa do Governo Federal é movimentar cerca de R$ 67 bilhões ao longo de todo o processo de privatização da maior empresa de energia elétrica da América Latina. Entretanto, apenas R$ 25,3 bilhões iriam diretamente para o caixa do Tesouro. A maior parte do valor arrecadado, R$ 32 bilhões, será utilizada na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), que tem como um dos objetivos centrais amenizar os efeitos dos reajustes tarifários. O restante, R$9,7 bilhões, vai ser usado para cumprir os compromissos de investimento nas bacias hidrográficas do país.
Próximos passos
Após a aprovação por 7 a 1 no plenário do Tribunal de Contas da União (TCU), o processo de privatização da Eletrobras ainda precisa seguir um determinado rito.
A próxima etapa é o encaminhamento da documentação da estatal para a análise da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e para a Securities and Exchange Commission (SEC), entidade que cumpre o mesmo papel da CVM nos Estados Unidos. Isso é necessário porque as ações da Eletrobras são negociadas no mercado norte-americano, além do brasileiro.
Também acontecerá um processo conhecido como “road show”, que consiste em uma série de reuniões com potenciais investidores nacionais e estrangeiros. A última etapa é efetivamente a operação de venda das ações da União na Bolsa de Valores.
Aumento na conta de luz
Um dos efeitos mais nocivos da privatização da Eletrobras será o forte reajuste nas tarifas de energia elétrica.
De acordo com um artigo publicado no site Brasil de Fato por Gilberto Cervinski, especialista em Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo pela UFRJ, e Fabiola Latino Antezana, especialista em Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo pela UFRJ, “o governo Bolsonaro propaga que a privatização poderá diminuir em 7,36% a tarifa de energia. Uma falsidade completa. (…) Juntamente com a Lei da Privatização da Eletrobras, o governo conseguiu aprovar uma série de outras medidas que, juntas, aumentarão o custo da energia aos consumidores finais. Uma delas prevê que a Eletrobras passe a cobrar mais caro pela energia das suas usinas. Atualmente, cerca de 20 hidrelétricas (13.500 MW de potência), como as usinas da Chesf no rio São Francisco, estão vendendo sua energia ao preço de 65 reais por 1.000 kWh (R$ 65/MWh), enquanto as usinas privatizadas cobram acima de 250 reais pela mesma quantidade de energia hidráulica”.
Os autores do artigo ressaltam que os custos gerados pela privatização da Eletrobras cairão sobre os consumidores brasileiros, que vão arcar com a conta da desestatização da empresa. Segundo Gilberto Cervinski e Fabíola Latino Antezana, “as estatais vendem mais barato. Com a privatização, esse modelo dará lugar ao regime de mercado via produtor independente, o que permitirá a descontratação e a recontratação da mesma energia, agora com preços de mercado (quatro vezes mais caro). Essa diferença será repassada integralmente em aumentos futuros nas contas de luz da população. (…) Este valor será cobrado dos 75 milhões de consumidores residenciais brasileiros com aumentos na conta de luz, que vigorarão pelos próximos 30 anos, tempo de concessão previsto no processo de privatização (até 2051)”.
Importância estratégica da Eletrobras
Além do impacto significativo no bolso dos consumidores e consumidoras no Brasil, a perda do controle da Eletrobras pelo Governo brasileiro – diante da relevância estratégica da estatal – pode representar um risco para o país.
Hoje, a União tem o controle de 62% do sistema Eletrobras, que reúne companhias como Furnas, Eletronorte, Eletrosul, Cepel, Chesf, entre outras. Através desse complexo conjunto empresarial, o Estado controla 125 usinas capazes de gerar 50.000MW, 335 subestações elétricas, e uma rede de transmissão de 71.000 Km. Tudo isso operado por 12.500 funcionários (as).
Dezenas de hidrelétricas – entre elas Xingó, Belo Monte, Sobradinho, e Tucuruí – deixarão de ter a gerência do Governo Federal após a efetivação do processo de capitalização da empresa estatal.
Há anos que Ildo Sauer, professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP, vem alertando para os riscos da privatização de uma empresa pública como a Eletrobras, mostrando que a desestatização seria a “pá de cal” no setor elétrico nacional. “A Eletrobras é fruto de uma história de modernização do país. (…). A empresa cumpriu o papel de organizar o sistema de transmissão elétrica no Brasil. Os Estados Unidos mantêm todas a suas hidrelétricas sob controle público. Porque o sistema elétrico não é só destinado à produção de energia elétrica”, disse o professor da USP em entrevista à Rádio Brasil Atual.
A nota técnica do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) ressalta que a maioria dos grandes países do mundo detém o controle sobre segmentos estratégicos como o setor elétrico.
De acordo com o documento do DIEESE, “como se viu a partir da experiência internacional, as questões de soberania e segurança energética, os desafios relacionados à transição energética e as demandas por maior democratização do acesso à energia elétrica ensejam o controle estatal no setor nesse setor. Além disso, a condição de monopólio natural característica da geração hidrelétrica deve compreender o interesse coletivo envolvido na gestão de bacias Privatização da Eletrobras: risco para a soberania energética do país 13 hidrográficas, como vazão dos rios, segurança das barragens, preservação ambiental, complementaridade com atividades econômicas como a agricultura, a psicultura, o turismo etc. No caso da transmissão de energia, também um monopólio natural, é fundamental destacar seu papel na integração e redução de disparidades regionais no acesso à energia elétrica”.
Conceição Cassano, diretora da Confederação das Mulheres do Brasil (CMB) e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), também chamou a atenção para o caráter estratégico da Eletrobras e ressaltou a importância de lutar contra a consolidação do processo de privatização estatal:
“Estatais como a Eletrobras são estratégicas. Os setores energéticos são considerados estratégicos em todo o mundo, são fundamentais para a economia e para a soberania de um país. Temos que unir todas as forças para impedir essa privatização, impedir essa entrega da nossa soberania”, afirmou a dirigente comunista.
Denuncie irregularidades na privatização da Eletrobras
O Coletivo Nacional dos Eletricitários criou o projeto Salve a Energia, um espaço “destinado a receber relatos sobre indícios de irregularidades no processo de privatização da Eletrobras”. As informações relatadas “serão tratadas pelo jurídico do Coletivo, sendo preservada a identidade dos informantes”.
As denúncias podem ser realizadas através do site Salve a Energia: https://salveaenergia.com.br/escuta-digital/
*Com informações do Site Brasil de Fato e da Rádio Brasil Atual