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Por Theófilo Rodrigues

Uma nova aventura política parece emergir nesse início do século XXI: a política dos Comuns. Movimentos sociais em todo o mundo reivindicam plataformas, programas e práticas que colocam aquilo que chamam de “Comum” no centro do tabuleiro político. Do mundo da sociedade civil para o mundo da sociedade política, esse movimento tem logrado sucesso, inclusive com vitórias eleitorais nas prefeituras de Paris e Barcelona, entre outras. Agora, em 2020, chegou a vez do Brasil. Mas o que significa essa política dos Comuns?

Barcelona talvez tenha sido a primeira entrada em cena do movimento dos Comuns na política internacional nesse início do século. Em 2015, a coligação “Barcelona em Comum” uniu Podemos e a Izquierda Unida – coligação que conta com os comunistas do PCE – para eleger Ada Colau como prefeita da cidade. Essa vitória também foi possível graças ao apoio do Partido Socialista. O sucesso da “Barcelona em Comum” fez Colau ser reeleita em 2019. Em seu primeiro mandato, a prioridade da prefeita foi uma forte política de habitação social para combater o processo de gentrificação tão recorrente em grandes centros urbanos.

Em França, no atual processo para as próximas eleições municipais que ocorrerão em março, o Comum também se tornou um movimento com amplas chances de vitória. Sob a bandeira da coalizão “Paris em Comum”, a atual prefeita Anne Hidalgo busca sua reeleição com o apoio do seu Partido Socialista (PS), do Partido Comunista Francês (PCF) de Ian Brossat e do Génération.S (G.S) de Benoit Hamon. Com forte ênfase no desenvolvimento sustentável, Hidalgo pretende transformar Paris na capital das ciclovias, com a proibição de carros no centro da cidade.

No Brasil, um dos primeiros ensaios desse tipo de movimento social e político ocorreu na eleição municipal do Rio de Janeiro, em 2016, com a coligação “Rio em Comum”, liderada por Jandira Feghali (PCdoB) e com Edson Santos (PT) de vice. Com uma campanha de comunicação que contou com membros do coletivo Mídia Ninja e de outras mídias alternativas da cidade, a “Rio em Comum” trouxe o tema do direito à cidade, da pluralidade e da diversidade para a centralidade do debate político no Rio de Janeiro. A chapa formada por uma mulher comunista e um negro petista enfrentou quase uma dezena de outros candidatos brancos, a maior parte de partidos conservadores. Contudo, a ideia de construir uma chapa unificada do campo progressista não teve sucesso. Além da “Rio em Comum”, o PSOL e a REDE lançaram candidatos próprios e o PSB e o PDT apoiaram candidatos de partidos conservadores. Marcelo Freixo, do PSOL, que também opera uma política dos Comuns, foi ao segundo turno naquela eleição, porém perdeu para o conservador Marcelo Crivella (PRB).

Mas agora, quatro anos depois daquele ensaio local, a lição sobre a importância da unidade entre os Comuns talvez tenha sido aprendida. Liderado pela comunista e feminista Manuela D´Ávila, o Movimento Comuns ressurge com uma capilaridade nacional ainda não vista no Brasil. Com a credibilidade de ter sido a candidata à vice-presidência da República que foi ao segundo turno de 2018 no enfrentamento contra Jair Bolsonaro, Manuela agora se dispõe a percorrer todo o país em favor da articulação da plataforma dos Comuns.

A preocupação de Manuela é real. Hoje o dinheiro é uma barreira que torna a política representativa um espaço de poucos e que afasta muitos jovens da participação. O movimento dos Comuns tem por objetivo criar ferramentas coletivas para a superação desses obstáculos impostos pelo capital. O primeiro grande teste dessa ação será nas eleições municipais de 2020.

O movimento dos Comuns no Brasil está alicerçado em cinco grandes eixos temáticos: a defesa dos direitos humanos; a inovação tecnológica como ferramenta para a participação, deliberação e transparência; o desenvolvimento sustentável; a democracia; e a resistência ao governo autoritário de Jair Bolsonaro. Sob uma linguagem que também está presente nos escritos de Ernesto Laclau, Chantal Mouffe e Nancy Fraser, os Comuns buscam a radicalização da democracia, ou seja, a construção de um projeto de cidade e de país que case as lutas por reconhecimento com as lutas por redistribuição. Dito de outro modo, trata-se de um movimento anticapitalista, antissexista, antirracista e em defesa do desenvolvimento sustentável.

Um dos grandes desafios dos Comuns é a costura da unidade na diversidade. Diga-se de passagem, esse não é um problema apenas brasileiro. Em França, como já foi dito, Anne Hidalgo é a líder da coalizão “Paris em Comum”. Mas outra candidata da esquerda, Danielle Simonnet, do movimento “França Insubmissa” de Jean-Luc Mélenchon, também pretendia disputar a eleição de Paris com uma coalizão denominada “Paris em Comum”. Simonnet perdeu o nome da chapa, mas não abriu mão de ser a candidata da “França Insubmissa” contra Hidalgo. Na Espanha, um dos principais nomes do Podemos, Ínigo Errejón, rompeu com o líder do partido, Pablo Iglesias, e organizou o Más País, ao lado da prefeita de Madri, Manuela Carmena. Hoje, Más País e Podemos disputam os rumos dos Comuns na Espanha. No Brasil, uma aliança que pudesse reunir amplos movimentos sociais com os partidos de esquerda como PCdoB, PSOL, PT, PDT e PSB nunca foi vista. Esse é um desafio para o movimento dos Comuns que vai exigir virtude e habilidade política de Manuela D´Ávila.

Para além da práxis política propriamente dita, a ideia do Comum também tem animado a teoria política nesse início do século XXI. Provavelmente Antonio Negri e Michael Hardt foram os que primeiro internacionalizaram essa problemática. Com a trilogia “Império”, “Multidão” e “Bem-Estar Comum”, publicados em 2000, 2004 e 2009, respectivamente, os autores apresentaram o que seria a soberania nos novos tempos (o Império), o novo ator político dessa nova soberania (a Multidão) e a alternativa pós-capitalista possível (o Bem-Estar Comum). Mas Negri e Hardt falharam decisivamente ao apontar como seria constituído esse novo ator político, como seria organizada essa Multidão. A Multidão surge do nada, como um raio em dia de céu azul, como parecem sugerir Hardt e Negri? Não, dizem os Comuns, ela precisa ser organizada.

Animados pelo debate proposto por Negri e Hardt, dois pensadores franceses, Pierre Dardot e Christian Laval, lançaram em 2014 o livro “Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI”. No entanto, os dois também falharam ao descrever o “Comum” como uma prática política oposta ao do comunismo do século XX. Dardot e Laval parecem exibir uma desnecessária vontade de demarcação de campo, ao afastarem o projeto do “Comum” no século XXI das experiências socialistas do século XX. Por óbvio, as experiências políticas se diferenciam ao longo do tempo, mas romper com elas ou tornar as velhas experiências em adversárias das novas não contribui para a prática do “Comum” que o século XXI exige. Nesse sentido, Dardot e Laval parecem ser antidialéticos. Distante de todos esses autores, o movimento dos Comuns busca construir sua própria teoria política.

O movimento dos Comuns no século XXI precisa ser um movimento generoso. Generoso com as experiências passadas da história, mas também generoso com as milhares de mãos que constroem um mundo mais socialmente justo no presente. O movimento dos Comuns de hoje sabe que não há uma única força política ou um único ator político detentor da razão e que não há saída individual para problemas coletivos. Os Comuns são muitos e nisso reside sua força e sabedoria.

Theófilo Rodrigues é pesquisador de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ.

Publicado originalmente em O cafezinho.